1984...

Todos lembram do filme "The Truman Show" (1998) que conta a história de um cara que já balsaquiano, interpretado por Jim Carrey, descobre que toda sua vida é um programa de Tv. Seus parentes e amigos são atores e toda a cidade em que ele vive é um cenário.
O filme é bom e fez um até um certo sucesso. Eu adorava o filme. Na 2º grau eu tinha um professor de ética e cidadania que passava esse filme pra todas as turmas, desde a 5ª série até o 3º ano. E eu sempre dava um jeito de fugir da minha aula e entrar na sala em que ele estivesse passando o filme, me esconder lá no fundão, e assistir o filme pelá enésima vez.
Mas o que eu não sabia, e acho que meu professor também não, é que aqui no Brasil, 3 anos antes do lançamento do filme gringo, um brazuca, lá da terra dos pampas já tinha escrito uma crônica baseado na mesma idéia de "The Truman Show".
Esse bom brasileiro é Luis Fernando Veríssimo, e o texto chama-se "O Ator". Veríssimo resume o que o filme tenta passar em duas horas, em duas folhas de livro. E sem perder a angústia o desespero e o leve toque de humor, também presentes no filme estado-unidense.


Como não achei o texto na internet, transcrevi ele aqui no blog à quem possa interessar. Tirem suas próprias conclusões.



O Ator

O homem chega em casa, abre a porta e é recebido pela mulher e os dois filhos, alegremente. Distribui beijos entre todos, pergunta o que há para jantar e dirige-se para o seu quarto. Vai tomar um banho, trocar de roupa e preparar-se para algumas horas de sossego na frente da televisão antes de dormir. Quando está abrindo a porta do seu quarto ouve uma voz que grita:

- Corta!

O homem olha em volta, atônito. Descobre que sua casa não é uma casa, é um cenário. Vem alguém e tira o jornal e a pasta de suas mãos. Uma mulher vem ver se sua maquilagem está bem e põe um pouco de pó no seu nariz. Aproxima-se um homem com um script na mão dizendo que ele errou uma das falas na hora de beijar as crianças.

- O que é isso? – pergunta o homem. – Quem são vocês? O que estão fazendo dentro da minha casa? Que luzes são essas?

- O que, enlouqueceu? – pergunta o diretor. – Vamos ter que repetir a cena. Eu sei que você está cansado, mas...

- Estou cansado, sim senhor. Quero tomar meu banho e botar meu pijama. Saiam da minha casa. Não sei quem são vocês, mas saiam todos. Saiam!

O diretor fica parado de boca aberta. Toda a equipe fica em silêncio, olhando para o ator. Finalmente o diretor levanta a mão e diz:

- Tudo bem pessoal. Deve ser estafa. Vamos parar um pouquinho e...

- Estafa coisa nenhuma! Estou na minha casa, com a minha... A minha família! O que vocês fizeram com ela? Minha mulher! Os meus filhos!

O homem sai correndo entre os fios e refletores, à procura da família. O diretor e um assistente tentam segurá-lo. E então ouve-se uma voz que grita:

- Corta!

Aproxima-se outro homem com script na mão. O homem descobre que o cenário, na verdade, é um cenário. O homem com um script na mão diz:

- Está bom, mas acho que você precisa ser mais convincente.

- Que-quem é você?

- Como, quem sou eu? Eu sou o diretor. Vamos refazer esta cena. Você tem que transmitir melhor o desespero do personagem. Ele chega em casa e descobre que sua casa não é uma casa, é um cenário. Descobre que está no meio de um filme. Não entende nada.

- Eu não entendo...

- Fica desconcertado. Não sabe se enlouqueceu ou não.

- Eu devo estar louco. Isto não pode estar acontecendo. Onde está minha mulher? Os meus filhos? A minha casa?

- Assim está melhor. Mas espere até começarmos a rodar. Volte para sua marca. Atenção, luzes...

- Mas que marca? Eu não sou personagem nenhum. Eu sou eu! Ninguém me dirige. Eu estou na minha própria casa, dizendo as minhas próprias falas...

- Boa, boa. Você está fugindo um pouco do script, mas está bom.

- Que script? Não tem script nenhum. Eu digo o que quiser. Isto não é um filme. Isto é simbolismo ultrapassado. Essa de que o mundo é um palco, que tudo foi predeterminado, que não somos mais do que atores...Porcaria!

- Boa, boa. Está convincente. Mas espere começar a filmar. Atenção...

O homem agarra o diretor pela frente da camisa.

- Você não vai filmar nada! Está ouvindo? Nada! Saia da minha casa.

O diretor tenta livrar-se. Os dois rolam pelo chão. Nisto ouve-se uma voz que grita:

- Corta!

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